terça-feira, 6 de novembro de 2018

No domínio do surreal




Resolvi mudar de operadora e concentrar tudo numa só, achei mais fácil e prático sobretudo depois de ter recebido trinta, sim trinta chamadas num dia a tentar propor qualquer coisa que não me interessava nada, para dizer com franqueza não sei se me interessava ou não, simplesmente eu não queria ouvir, detesto decidir este tipo de coisas pelo telefone e só depois de dar gritos e dizer que não era admissível receber trinta chamadas num dia e quinze nas primeiras horas do dia seguinte e que iria apresentar uma reclamação junto da Deco o assunto acalmou.
A decisão estava tomada, primeiro rescindir o contacto com a operadora das trinta chamadas e passar tudo para a outra. Fui atendida por homem educado que entendeu a minha reclamação e à laia de desculpa esfarrapada me diz “Pois é eles no marketing às vezes são um pouco agressivos” mas analisa cuidadosamente o meu contracto e sugere-me que em vez de rescindir com eles porque não rescindir com a outra operadora “afinal a senhora tem connosco televisão, internet, telefone fixo, só falta mesmo o telemóvel”. Era um facto, respondi-lhe: “só mudo se tiver uma possibilidade de não receber uma única chamada dos seus amigos do marketing”, “não há problema é só assinar este documento em que declara que não quer que os seus dados sejam usados para outros fins que não sejam os estritamente operacionais.” Assinei, “souvent  femme varie bien fol est qui s’y fie” bem dizia François 1er,  recebi instruções e explicações, deu-me um pequeno envelope “a senhora tem aqui o seu novo pin, vai receber uma comunicação nossa quando tiver que mudar o pin, é muito fácil…”  Antevi complicações futuras tendo em vista a minha relação tempestuosa com máquinas, aparelhos electrónicos, porcas e parafusos,  mas não me pareceu difícil, afinal só tinha que enfiar no buraquinho microscópico a ponta de um clip e o telefone abria-se e depois proceder à troca do cartão.
Dias depois recebo a mensagem que no dia 5 a partir das 9 da noite devia proceder à mudança. Pontualmente e porque o meu móvel já apresentava sinais de desequilíbrio, respirei fundo, fui buscar o cartão novo, o clip,  abro-o um pouco e tento enfiar a uma das pontas no tal buraquinho, claro como eu antecipara, o clip não entrou, o telefone escorregou, a haste do clip partiu-se…uma voz dentro de mim matraqueava incessantemente “não te deixes vencer, não te deixes vencer”, repeti a operação e resultado igual, não tinha outra solução, dar-me por vencida e telefonar para a operadora, depois de se …carregue no 1, se…carregue no 2, se quiser falar com o operador  carregue no 9, aparece dum planeta onde os homens e mulheres ainda se comunicam por fala,  uma voz masculina, que se apresenta, “sou o João diga-me como posso ajudá-la”, explico o meu drama, pergunta se já experimentei o clip, pede-me para tentar mais uma vez, acedi, mas não resulta, “parece-me que infelizmente não a posso ajudar” “Oh Sr. João não posso ficar sem telefone e a esta hora não vou a nenhuma loja.” “Pois é eu realmente gostava de a ajudar mas não vejo como…espere aí tive uma ideia “ a senhora não tem por acaso brincos para orelhas furadas? “Sr. João não tenho as orelhas furadas…” “Ah que pena…sabe aquelas hastes que têm uma bolinha na ponta?” Acendeu-se uma luz, quem sabe… “Deixe-me ver talvez possa encontrar qualquer coisa, pode esperar um bocadinho”. “Eu espero esteja à vontade, veja lá se encontra…” Encontrei uns brincos que obviamente nunca tinha usado e lá estava a tal da haste com a bolinha. “Sr. João, encontrei, agora diga-me lá como devo fazer” “Sim, sim eu explico, está a ver o buraquinho não está? “Sim, sim estou…”Tem o telefone em cima duma mesa não tem?” “Sim na mesa da sala de jantar.” “Então vamos lá, enfie a haste no buraquinho, está a ver, consegue enfiar?” “Sim consigo, então faça força, carregue na bolinha, está a carregar na bolinha?” “Estou a carregar na bolinha” “Faça força” e de repente “miracolo, miracolo” salta cá para fora uma minúscula espécie de gaveta e o Sr.João todo contente dá-me as instruções finais.
Sr. João merece um prémio, mas só com João não chego lá, mas mesmo assim muito obrigada!

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Realidade e ficção




Escrever sem que a nossa realidade interfira na escrita, diria missão quase impossível… como podemos falar com convicção do que não conhecemos, do que nunca vimos, das emoções que não sentimos, das dores que não tivemos.
Natália Correia diz num poema “Nascitura estava… eu sou dos Açores naquilo que tenho de basalto e flores…mas nós só nascemos quando somos nós que temos as dores…”
Sim, só quando nós temos as dores, sejam elas quais forem, arranhões ligeiros, feridas profundas, queimaduras graves, podemos levá-las para os nossos personagens fictícios e dar-lhes as dores que nós sentimos. Aí a realidade torna-se ficção, ficção credível.
Não gosto da ficção quando ela nos leva para o caminho do alienamento porque nada está lá, nem a verdade, nem a ficção verdadeira.
Tudo o que escrevemos a sério, passa por nós, mesmo que não sejamos sérios, somente verdadeiros na nossa realidade. A ficção pura e simples, o uso das palavras para efeitos sonoros ou oníricos, só em doses reduzidas, as palavras dos outros têm que  provocar um estremecimento, um sorriso, uma lágrima, sem esse eco a ficção é puro divertimento “divertissement”. Então divirto-me doutra maneira!

segunda-feira, 26 de março de 2018

Variações sobre o mesmo tema



“O teu sorriso apagava a luz do dia”

Aproximei-me, estavas de costas e não me vistes, quando sentiste as minhas mãos nos teus ombros, voltaste-te e o teu sorriso apagava a luz do dia.
Abracei-te com tanta força que espantado perguntaste:
- Aconteceu alguma coisa?
- Sim, encontrei-te e reencontrei o teu sorriso e com ele o sol, a esperança que pensava adormecida.”
Permanecíamos calados, nada podíamos acrescentar. Os corpos unidos como se nada jamais os pudesse separar. As palavras não podiam traduzir a emoção, não diriam mais que a força  daquele abraço.
Caminhámos na areia branca onde o tempo começava a marcar o futuro, o nosso futuro.

Esperava a chegada do barco com ansiedade, o meu sonho que um dia levaste. Tinham passados anos, anos de espera, incerteza, desespero…mas agarrava-me à esperança, sabendo que se a largasse nunca mais encontraria forças para continuar. O vazio tomaria conta de mim e o sonho ter-se-ia partido em mil pedaços.
Acarinhei a ilusão, sequei as lágrimas e hoje chegas trazendo de volta o teu sorriso que apagava a luz do dia…

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Um telefone antigo e uma caneta Mont Blanc...




Abriu a porta a custo, tinha sempre a sensação de estar num espaço que não lhe pertencia, numa intimidade que não era sua.
A luz pálida do fim da tarde entrava pelas persianas, uma penumbra esbatia os contornos e tornava tudo irreal. Lá estava o telefone antigo na entrada. Lembrava-se ainda de ouvir a campainha tocar com estridência, até que alguém perguntava “Quem fala faz favor?” e depois algumas frases e sempre a terminar “Eu não esqueço, não se preocupe, eu dou o recado”.
A casa mantinha-se fechada, cheia de segredos que ninguém queria desvendar; só ele se atrevia a abrir portas, entrar na biblioteca, escolher um livro, às vezes dois. Escrevia sempre no caderno os títulos e os autores.
Era uma espécie de ritual, tirava do bolso a caneta preta que herdara do avô e com a sua letra inconfundível e quase indecifrável tomava nota.
Hoje estava perdido, a irrealidade do lugar, a sua própria irrealidade, não lhe permitia escolher fosse o que fosse.
Sentou-se à secretária e começou a escrever:
“Estou aqui sem conseguir perceber porque volto a esta casa, onde já nada é vivo, mas nada ainda morreu na minha memória. Queria que estivesse aqui. O espaço está cheio da sua ausência, e eu estou à espera que o vazio se preencha com a sua voz e que eu possa perguntar: mas porquê, mas porquê, a vida, a morte, porquê avô?
Adivinho a sua reposta:
“Sabes, o belo da vida é que não é eterna. Já pensaste no peso da eternidade?”


terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Balanço - perdas e ganhos


Os anos não acabam, continuam suavemente no decorrer dos dias que marcam o início de um novo ano. Nós também não mudamos, apesar das promessas, dos desejos, e do entusiasmo que queremos ter ao baterem as doze badaladas.
O ano foi bom, difícil, angustiante, desgastante, feliz, infeliz? Às vezes foi tudo isso em doses moderadas, outras vezes não houve moderação e os tempos de dor acentuaram-se de tal maneira, que todo o resto se desvaneceu em cores pálidas. Não gosto de falar de sentimentos tão íntimos como ausência, perda, vazio, tenho a sensação de estar a fazer uma espécie de strip tease sentimental e que deveria ser capaz de resolver essa complexidade dentro de mim, sem precisar de escrever ou falar do que se passa quando reconhecemos que o vazio não será preenchido, e que a ausência será para sempre. Talvez eu esteja assim a estender a mão a alguém, a querer sentir o calor e a força de outra mão, os dedos entrelaçados nos meus e as lágrimas a caírem sem pudor.
Foram muitas perdas já, fui ganhando e perdendo resistência sem saber bem até quando podia, até quando era capaz. E no entanto aqui estou, viva ainda, sem amargura, sem medo, procurando analisar o que permanece intacto dentro de mim, o que merece a pena preservar, o que merece a pena eleger e cultivar, esperando talvez de forma quase irracional uma recompensa que não sei qual é.
A dor é um percurso solitário, ninguém do outro lado pode medir, pesar, avaliar. A dor é nossa, como também é nossa a capacidade de deixar que cicatrize, mesmo quando o processo é longo e doloroso. Tenho pensado muito nisso e reconheço na minha resiliência uma característica que me protege da melancolia e da solidão. Sou ainda capaz de rir e considero o sentido de humor uma espécie de privilégio que me permite dar um passo em frente e continuar.


“Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade. O essencial faz a vida valer a pena, e, para mim, basta o essencial!” Mário de Andrade 

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

"REQUIEM"



Chegou demasiado tarde. O destino não esperara por si. Olhava para trás procurando encontrar razões para aquele desencontro… ambos tinham sido capazes de ultrapassar barreiras sociais, familiares e agora quando o caminho parecia livre e que poderiam caminhar lado a lado, olhando o horizonte e vivendo o futuro que tantas vezes lhes preenchera os sonhos, o desejo, a imaginação, agora, chegara demasiado tarde.
O barco afastava-se lentamente, deixando atrás um sulco branco de espuma que se desfazia, como se desfazia a esperança, o sonho, a vida.

Não tinha mais força, deixou-se cair na água revolta do mar…

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

“….Cada palavra tem o dever de não ser nenhuma coisa.” Mia Couto


“Parole, parole, parole…” lembro-me da canção. Palavras que largamos sem sentido, que enchem o espaço e desaparecem segundos depois. Palavras que não exprimem a verdade, porque não queremos que ninguém diga a verdade. Recordo a peça “Huis Clos”de Sartre que vi em Paris há muitos, muitos anos, agora quase tudo foi há muitos, muitos anos. Três, seriam mais? Três personagens fechados num quarto, dizendo mentiras que queriam que fossem verdades e quando realmente a verdade apareceu percebem que estão no inferno.
O inferno da verdade, das palavras que não escondem nada, que estão ali ameaçadoras, acusadoras, não há benevolência na verdade. “Nua e crua” por alguma razão a verdade amedronta, fugimos dela porque nos sentimos incapazes de viver só com ela. A mentira é aquilo que muitas vezes queremos ouvir, aquilo que nos permite continuar, afastamos a verdade com um gesto brusco e deixamos que a mentira nos possua.

Palavras que esquecemos, que não têm cheiro nem sabor, ou têm? Palavras que não são palpáveis, ou são? Agarramos a palavra, seguramos com força e quando abrimos a mão não está lá nada, nada. Palavras que exprimem emoções, raiva e impotência, palavras carinhosas que nos acariciam, que tocam o nosso corpo e agitam a nossa consciência …e depois impiedosamente nos deixam vazios.