Viemos para Lisboa quando rebentou a II
Guerra Mundial. A companhia inglesa que explorava as minas de lousa, perto de
Valongo, e onde o meu pai era director, encerrava as suas actividades, enquanto
os homens eram chamados a alistar-se no exército de Sua Majestade, o rei Jorge
VI.
Lembro-me da viagem de volta, com o
Ford atulhado de tudo o que não coubera na camioneta, do gato preto de nome
Gepeto, e do cão branco Bouboule, que calmamente e em plena harmonia, dormiam
no chão do carro. O Bouboule, herdara o nome de um cómico francês da época, e
que o meu pai francófilo e anglófilo de alma e coração, lhe tinha atribuído. o Bouboule viveu até aos dezoito anos,
perseguindo ferozmente ratos e gatos, excepção feita ao Gepeto de quem era
amigo do peito.
Uma vez instalados no Bairro Azul,
passámos a ter em casa, um bando de mulheres que faziam parte da nossa
organização familiar. A minha mãe, que se devia sentir poderosíssima,
comandava, bastante mal, todas essas mulheres, necessárias para que o lar, mais
azedo do que doce na maioria das vezes, funcionasse condignamente. Lembro-me
das criadas, muitas Marias e algumas Rosas, das mulheres-a-dias que teimavam em chamar-se Conceição,
da D. Alice costureira e da tia Júlia.
A tia Júlia era meia-irmã da minha
querida avó Maria, mãe do meu pai, e filha mais nova do meu bisavô Francisco,
um comerciante de sucesso na cidade do Mindelo, capital da ilha de S. Vicente.
O avô Francisco tinha chegado a S. Vicente, quando a ilha se tornara escala obrigatória a meio do Atlântico, para
abastecimento de carvão de navios de todo o mundo. O Porto Grande fervilhava de
actividade, e de nacionalidades, e a casa comercial do meu bisavô ia de vento em popa. O Mindelo
era, à sua escala, uma cidade cosmopolita, com uma vida cultural bastante intensa, e
onde a influência inglesa se fazia sentir em vários aspectos da vida social e
desportiva. Até um campo de golfe havia na altura. Em 1874 eram amarrados os
cabos submarinos de telégrafo da Western Telegraph Company, ligando assim
S.Vicente à Madeira e ao Brasil, e poucos anos mais tarde a África e à Europa.
A Julinha, como era chamada por todos
os parentes mais próximos, nasceu e cresceu no Mindelo, numa casa grande e
abastada, mimada e estragada pelo pai Francisco que lhe permitia todos os
caprichos. Vaidosa, senhora do seu nariz, petulante, recusara com altivez todos
os pretendentes que lhe tinham aparecido, e viera para Lisboa, dizia-se à boca
pequena, na esteira de um amor ilícito, e acabara, obviamente, solteirona.
Teria uns cinquenta e poucos anos, quando passou a fazer parte do grupo de
mulheres que povoaram a minha infância.
Tinha sido uma mulher bonita, de
feições harmoniosas; as fotografias da época mostram-na com o cabelo apanhado
com graciosidade, blusas brancas cheias de pregas e folhos, uma cintura de
vespa e um olhar altivo e mordaz que conservou até ao fim.
Voluntariosa, impetuosa, e pouco
previdente, a família acusava-a de ter deixado o pai, velho e doente, para
seguir mais um dos seus caprichos, a tia Júlia tinha, quando eu a conheci,
pouquíssimo dinheiro; vivia numa parte de casa alugada, próximo do Saldanha,
mas isso não abalara o seu orgulho, que se mantinha inalterável.
Duas vezes por semana vinha passar o
dia a nossa casa. Chegava de manhã, instalava-se na marquise, junto à sala de
jantar, e entretinha-se a bordar, a fazer tricot ou a ler o jornal. Almoçava,
tomava chá, jantava, e depois ia a pé, tranquilamente, para casa.
Não era meiga, não gostava de crianças,
não brincava comigo, nem me contava histórias engraçadas, mas também não
procurava enfiar-me coisas idiotas na cabeça, como uma menina que se preze tem
que saber bordar, ou costurar, ou qualquer outra coisa que se identificasse com a imagem da boa dona de casa, e constituísse o modelo
a ser seguido, por qualquer ser do sexo feminino, que quisesse ser considerado
digno de respeito.
Na realidade, a tia Júlia nunca tinha
sido boa dona de casa, vivera cercada de serviçais que satisfaziam as suas
vontades, mandava e desmandava a seu belo prazer, e mesmo sem um tostão, nunca
a vi ter um gesto de humildade ou submissão. Punha defeitos em tudo; a carne
não estava bem assada, as fatias do bolo eram demasiado finas, o arroz estava colado,
as laranjas eram amargas. O meu pai, sobrinho dela, irritava-se imenso e ás
vezes dizia algo mais ríspido, mas isso não parecia incomodar a tia Júlia, que
continuou a passar os dias em nossa casa, até finalmente, ir para um lar da
terceira idade.
De vez em quando a minha mãe tinha umas
ideias malucas, e lembrava-se de pedir à tia Júlia para fazer bolo inglês ou,
quando alguém que vinha de Cabo Verde tinha trazido na bagagem, feijão pedra,
favona e outros ingredientes indispensáveis para preparar a cachupa.
Instalava-se então o caos na cozinha; a
tia Júlia dava ordens, voltava aos seus tempos de glória da casa grande do
Mindelo, e punha as Marias, ou as Rosas do momento, completamente ensandecidas.
“Maria põe o feijão de molho, Rosa bate as claras em castelo, Maria unta a
forma, Rosa acende o forno, Maria bate a manteiga com o açúcar, Rosa depena o
frango, Maria prepara a abóbora e a batata doce…”. A minha mãe dizia que a
Julinha era impossível, e que nunca mais lhe iria pedir para cozinhar fosse o
que fosse, até à próxima, claro.
Penso que a minha mãe, que adorava o
Carnaval, achava graça aquele folclore que quebrava a rotina e a monotonia, e
que finalmente resultava num excelente bolo inglês, ou numa exótica cachupa.
O bolo inglês tinha que ter todos os
ingredientes, as frutas cristalizadas, as nozes, as amêndoas, as uvas passas, o
açúcar amarelo, a manteiga, o brandy. No tempo do Mindelo, a tia Júlia,
mantivera relações de amizade com algumas das famílias inglesas e teria sido
certamente uma das suas amigas, que lhe deu a famosa receita do bolo que ela
iria repetir, sempre que alguém, que não estivesse no seu perfeito juízo, lhe
desse essa oportunidade.
Bolo inglês e cachupa não eram
compatíveis; ou um, ou outro. Não havia tachos, nem Rosas, nem Marias que
aguentassem; nem mesmo a minha mãe se atreveria a tal ousadia.
Ficou, na minha memória gustativa e
olfactiva, o sabor amanteigado do bolo inglês, o cheiro caramelizado das frutas
cristalizadas; da cachupa e o seu gosto exótico e tropical, os legumes
adocicados, os enchidos e as carnes cozidas que se desfaziam na boca. Ficou
desperta a minha curiosidade, e a vontade de experimentar novos sabores, de
viajar para terras longínquas através de especiarias, frutos, cheiros e gostos
diferentes.
Devo à tia Júlia, ter-me aberto a porta
de um mundo rico e saboroso, sempre possível de ser renovado, sempre possível
de ser reencontrado. Devo à tia Júlia, a quase incapacidade de me disciplinar
perante os tachos e panelas que vou sujando e usando sempre que início uma nova
viagem gustativa.