Maria de Lourdes da Câmara
Fialho e Madalena da Câmara Fialho eram primas direitas do meu pai, filhas do
tio António, irmão da minha avó Maria.
O
tio António e a mulher, a tia Beatriz, uma senhora simpática, parente próxima
pelo lado materno do Conde de Burnay, tinham acompanhado, acarinhado e alojado
em sua casa, durante as ausências prolongadas em África, do avô José e da avó
Maria, o meu pai e o tio Mário, que estudavam no colégio dos jesuítas em S. Fiel , próximo de Viseu,
desde os sete anos de idade.
Tanto
o tio António, como a tia Beatriz, tinham pelo sobrinho António uma ternura
especial, que era aliás totalmente correspondida, e apesar dos mais de vinte
anos que o meu pai passou em Angola, visitando-os no entanto sempre que vinha a
Lisboa, os laços de amizade forte e sincera foram mantidos, e a relação com os
tios e as primas Lurdes e Lena, permaneceu viva até ao fim.
Lembro-me
deles desde que me lembro de existir; viviam num andar grande e luminoso, que
fazia esquina com a Rua dos Lusíadas, com imensos quartos, salas e saletas: o
quarto da prima Lena, a sala de jantar, a sala de estar que fazia esquina,
cheia de luz, sofás de veludo, mesas redondas, cadeiras de braços, candeeiros
de porcelana com abat-jours de seda, almofadas e livros um pouco por todo o
lado, o escritório/ biblioteca, o quarto da prima Lurdes, o quarto dos tios, a sala
de costura, o quarto de passagem, onde vivia o Bijou, um macaco sagüim irritantíssimo, a casa de banho gigantesca, a cozinha escura e triste, com
janela para o saguão, e ainda o quarto da criada.
Durante
a guerra, e foram seis longos anos, íamos visitá-los pelo menos uma vez por
mês. Levávamos quase uma hora de carro eléctrico até ao Largo do Calvário, e
depois subíamos a pé, até à rua dos Lusíadas. Fui a menina querida das minhas
primas, Lurdes e Lena, até à minha adolescência; filha do primo António, por
quem elas tinham um sentimento, misto de admiração e fascínio, eu era uma
criança viva, curiosa, endiabrada q.b., bonita; tratavam-me como uma pequena
princesa e rodeavam-me de atenções. A minha escola, os meus estudos, os livros
que eu começava a ler, tudo isso era motivo de interesse. Ambas eram cultas,
curiosas e independentes financeiramente, o que não era, na altura, uma situação
muito comum; falavam de assuntos variados e interessantes, livros, filmes,
viagens, a guerra, os aliados, Churchill, Hitler. Eu era uma miúda, e
limitava-me a ouvir, mas gostava das conversas animadas à volta da mesa grande
e rectangular da sala de jantar, onde nos sentávamos para tomar chá, torradas,
pão-de-ló e bolachas. Detestava pão-de-ló, que achava um bolo seco e sem graça,
mas isso não me impedia de me sentir bem, divertida e respeitada. Curiosa e boa,
essa sensação de se ser respeitada quando se é criança.
Tinham
normalmente bastantes visitas, o arquitecto Centeno, feio, solteiro e
simpático, admirador eterno e platónico da prima Lourdes, a Maria Antónia de Mello
Breyner, poderosa, autoritária, o primo Alberto Amaral, médico, alto, grande e
desengonçado, a mulher, Maria Eugénia, bonita e doce, e outros que apareciam
com menos frequência.
Tanto
a prima Lurdes como a prima Lena tinham profissões de que gostavam e que as
preenchiam. A prima Lurdes traduzia filmes, na realidade praticamente todos os
filmes que eram exibidos naquele tempo, informavam que as legendas eram de M. L.
da Câmara Fialho; isso proporcionava-lhe o contacto com outras vidas, outras
realidades, histórias de amores e paixões, a brutalidade da guerra, o heroísmo,
a dor, a destruição, mas também com a comédia, o riso fácil e a música ligeira.
A prima Lurdes era alegre, bem-disposta e cheia de sentido de humor.
A
prima Lena era considerada a intelectual da família; fizera-se notar desde
muito nova pela sua inteligência, curiosidade e gosto pela leitura. Um grande
amigo do tio António, aconselhara-o a deixar a filha continuar os estudos,
porque com a inteligência e vivacidade que demonstrava, era uma pena não as
aproveitar para voos mais altos. A prima Lena faz então os sete anos do liceu
em apenas dois anos, e entra para a faculdade de letras, onde tira história e
filosofia com altíssimas classificações. Foi professora durante anos e diziam
as antigas alunas, que as suas aulas eram brilhantes.
Sorridentes
e vivas, extrovertidas e conversadoras, o serem solteiras, não lhes afectava o
bom humor. Gostavam de conviver, de ir ao teatro e à ópera, de viajar, de ler, o
que contribuiu para que se mantivessem sempre actualizadas e uma companhia
deliciosa para quem tinha o prazer de as conhecer.
Fisicamente,
as duas irmãs eram muito parecidas; sem serem altas, eram magras, bem
proporcionadas; não eram bonitas, mas tinham rostos agradáveis e um olhar alegre
e vivo que as tornava atraentes. Vestiam-se de uma forma elegante e confortável,
sendo que a prima Lurdes era mais “coquette” que a prima Lena. Gostava de usar
batom e um pouco de “rouge”, coisa que a prima Lena não fazia. As irmãs eram
amicíssimas e viveram sempre em perfeita harmonia.
Mas
nem tudo era perfeito em casa em casa dos meus tios:
- Havia
um ser, de quem eu tinha um medo, quase pânico: o macaco saguim de nome Bijou.
O Bijou, minúsculo como qualquer sagüim que se preze, vivia no quarto de
passagem para a casa de banho, preso por uma corrente bastante fina e
suficientemente comprida, que lhe permitia pular e trepar por uma espécie de
coluna de metal ali colocada, para que o Bijou pudesse fazer as suas
macaquices. Até aí, tudo bem. O pior era, quando por artes mágicas o Bijou se
libertava da corrente e resolvia ir visitar-nos à sala de jantar, onde animadamente
tomávamos chá. Aparecia de repente, segurando-se nos fios da electricidade, que
corriam na parede junto ao tecto, e soltando uns guinchos estridentes. O Bijou
era temperamental, tinha as suas simpatias e antipatias. Àqueles que não
estavam no seu coração, saltava-lhes em cima e pregava-lhes uma boa ferroada,
aos outros saltava-lhes também em cima, mas magnânimo, poupava-os da marca
aguçada dos seus dentes. Tinha uns ciúmes mortais do arquitecto Centeno de quem
se vingava sempre que podia, com mais uma ferroada. De uma maneira geral, o
Bijou gostava mais de mulheres do que de homens, o que na realidade não se lhe
podia levar a mal.
Eu
ficava em transe: seria eu a próxima vítima? Com seis anos, estava longe de me
considerar protegida pela minha condição feminina e ficava expectante e
aterrada, até o Bijou ser apanhado por uma das minhas primas ou já ter
aprontado mais uma das dele. Suspirava então de alívio, não tinha sido eu a
escolhida.
O
Bijou contribuía para um certo “suspense” e dava uma nota colorida e folclórica
aos chás na Rua dos Lusíadas. Os episódios burlescos, onde o Bijou era o actor
principal, não alteraram a frequência das nossas visitas à família Fialho.
O
convívio com as minhas primas Lena e Lourdes, influenciou definitivamente o meu
gosto pela leitura, estimulou a minha curiosidade, e manteve até hoje, desperto
e atento, o meu profundo interesse pela história. Elas são indissociáveis da
minha infância, continuo a ter por elas um imenso carinho, e a recordação de
duas mulheres afáveis e alegres, que gostavam de receber e conviver, para quem,
aparentemente, o celibato não pesava e não lhes trouxera qualquer amargura,
como se tivessem feito uma escolha consciente e lúcida e substituído o amor, o
prazer, a maternidade, pela amizade e pela liberdade de pensamento e acção.
Adorei a sua história como se eu estivesse a ver um filme bjs
ResponderEliminarLena, este relato e o da Praia das Maçãs são para te agradecer e muito.
ResponderEliminarA qualidade literária é enorme e o detalhe das memórias entusiasmante.
Gostaria muito de que fizesses um livro de crónicas / artigos deste blog.
Com amizade
Maria João E.