sábado, 29 de abril de 2017

Era uma vez um sagüim chamado Bijou




Maria de Lourdes da Câmara Fialho e Madalena da Câmara Fialho eram primas direitas do meu pai, filhas do tio António, irmão da minha avó Maria.
O tio António e a mulher, a tia Beatriz, uma senhora simpática, parente próxima pelo lado materno do Conde de Burnay, tinham acompanhado, acarinhado e alojado em sua casa, durante as ausências prolongadas em África, do avô José e da avó Maria, o meu pai e o tio Mário, que estudavam no colégio dos jesuítas em S. Fiel, próximo de Viseu, desde os sete anos de idade.
Tanto o tio António, como a tia Beatriz, tinham pelo sobrinho António uma ternura especial, que era aliás totalmente correspondida, e apesar dos mais de vinte anos que o meu pai passou em Angola, visitando-os no entanto sempre que vinha a Lisboa, os laços de amizade forte e sincera foram mantidos, e a relação com os tios e as primas Lurdes e Lena, permaneceu viva até ao fim.
Lembro-me deles desde que me lembro de existir; viviam num andar grande e luminoso, que fazia esquina com a Rua dos Lusíadas, com imensos quartos, salas e saletas: o quarto da prima Lena, a sala de jantar, a sala de estar que fazia esquina, cheia de luz, sofás de veludo, mesas redondas, cadeiras de braços, candeeiros de porcelana com abat-jours de seda, almofadas e livros um pouco por todo o lado, o escritório/ biblioteca, o quarto da prima Lurdes, o quarto dos tios, a sala de costura, o quarto de passagem, onde vivia o Bijou, um macaco sagüim irritantíssimo, a casa de banho gigantesca, a cozinha escura e triste, com janela para o saguão, e ainda o quarto da criada.
Durante a guerra, e foram seis longos anos, íamos visitá-los pelo menos uma vez por mês. Levávamos quase uma hora de carro eléctrico até ao Largo do Calvário, e depois subíamos a pé, até à rua dos Lusíadas. Fui a menina querida das minhas primas, Lurdes e Lena, até à minha adolescência; filha do primo António, por quem elas tinham um sentimento, misto de admiração e fascínio, eu era uma criança viva, curiosa, endiabrada q.b., bonita; tratavam-me como uma pequena princesa e rodeavam-me de atenções. A minha escola, os meus estudos, os livros que eu começava a ler, tudo isso era motivo de interesse. Ambas eram cultas, curiosas e independentes financeiramente, o que não era, na altura, uma situação muito comum; falavam de assuntos variados e interessantes, livros, filmes, viagens, a guerra, os aliados, Churchill, Hitler. Eu era uma miúda, e limitava-me a ouvir, mas gostava das conversas animadas à volta da mesa grande e rectangular da sala de jantar, onde nos sentávamos para tomar chá, torradas, pão-de-ló e bolachas. Detestava pão-de-ló, que achava um bolo seco e sem graça, mas isso não me impedia de me sentir bem, divertida e respeitada. Curiosa e boa, essa sensação de se ser respeitada quando se é criança.
Tinham normalmente bastantes visitas, o arquitecto Centeno, feio, solteiro e simpático, admirador eterno e platónico da prima Lourdes, a Maria Antónia de Mello Breyner, poderosa, autoritária, o primo Alberto Amaral, médico, alto, grande e desengonçado, a mulher, Maria Eugénia, bonita e doce, e outros que apareciam com menos frequência.
Tanto a prima Lurdes como a prima Lena tinham profissões de que gostavam e que as preenchiam. A prima Lurdes traduzia filmes, na realidade praticamente todos os filmes que eram exibidos naquele tempo, informavam que as legendas eram de M. L. da Câmara Fialho; isso proporcionava-lhe o contacto com outras vidas, outras realidades, histórias de amores e paixões, a brutalidade da guerra, o heroísmo, a dor, a destruição, mas também com a comédia, o riso fácil e a música ligeira. A prima Lurdes era alegre, bem-disposta e cheia de sentido de humor.
A prima Lena era considerada a intelectual da família; fizera-se notar desde muito nova pela sua inteligência, curiosidade e gosto pela leitura. Um grande amigo do tio António, aconselhara-o a deixar a filha continuar os estudos, porque com a inteligência e vivacidade que demonstrava, era uma pena não as aproveitar para voos mais altos. A prima Lena faz então os sete anos do liceu em apenas dois anos, e entra para a faculdade de letras, onde tira história e filosofia com altíssimas classificações. Foi professora durante anos e diziam as antigas alunas, que as suas aulas eram brilhantes.
Sorridentes e vivas, extrovertidas e conversadoras, o serem solteiras, não lhes afectava o bom humor. Gostavam de conviver, de ir ao teatro e à ópera, de viajar, de ler, o que contribuiu para que se mantivessem sempre actualizadas e uma companhia deliciosa para quem tinha o prazer de as conhecer.
Fisicamente, as duas irmãs eram muito parecidas; sem serem altas, eram magras, bem proporcionadas; não eram bonitas, mas tinham rostos agradáveis e um olhar alegre e vivo que as tornava atraentes. Vestiam-se de uma forma elegante e confortável, sendo que a prima Lurdes era mais “coquette” que a prima Lena. Gostava de usar batom e um pouco de “rouge”, coisa que a prima Lena não fazia. As irmãs eram amicíssimas e viveram sempre em perfeita harmonia.
Mas nem tudo era perfeito em casa em casa dos meus tios:
- Havia um ser, de quem eu tinha um medo, quase pânico: o macaco saguim de nome Bijou. O Bijou, minúsculo como qualquer sagüim que se preze, vivia no quarto de passagem para a casa de banho, preso por uma corrente bastante fina e suficientemente comprida, que lhe permitia pular e trepar por uma espécie de coluna de metal ali colocada, para que o Bijou pudesse fazer as suas macaquices. Até aí, tudo bem. O pior era, quando por artes mágicas o Bijou se libertava da corrente e resolvia ir visitar-nos à sala de jantar, onde animadamente tomávamos chá. Aparecia de repente, segurando-se nos fios da electricidade, que corriam na parede junto ao tecto, e soltando uns guinchos estridentes. O Bijou era temperamental, tinha as suas simpatias e antipatias. Àqueles que não estavam no seu coração, saltava-lhes em cima e pregava-lhes uma boa ferroada, aos outros saltava-lhes também em cima, mas magnânimo, poupava-os da marca aguçada dos seus dentes. Tinha uns ciúmes mortais do arquitecto Centeno de quem se vingava sempre que podia, com mais uma ferroada. De uma maneira geral, o Bijou gostava mais de mulheres do que de homens, o que na realidade não se lhe podia levar a mal.
Eu ficava em transe: seria eu a próxima vítima? Com seis anos, estava longe de me considerar protegida pela minha condição feminina e ficava expectante e aterrada, até o Bijou ser apanhado por uma das minhas primas ou já ter aprontado mais uma das dele. Suspirava então de alívio, não tinha sido eu a escolhida.
O Bijou contribuía para um certo “suspense” e dava uma nota colorida e folclórica aos chás na Rua dos Lusíadas. Os episódios burlescos, onde o Bijou era o actor principal, não alteraram a frequência das nossas visitas à família Fialho.
O convívio com as minhas primas Lena e Lourdes, influenciou definitivamente o meu gosto pela leitura, estimulou a minha curiosidade, e manteve até hoje, desperto e atento, o meu profundo interesse pela história. Elas são indissociáveis da minha infância, continuo a ter por elas um imenso carinho, e a recordação de duas mulheres afáveis e alegres, que gostavam de receber e conviver, para quem, aparentemente, o celibato não pesava e não lhes trouxera qualquer amargura, como se tivessem feito uma escolha consciente e lúcida e substituído o amor, o prazer, a maternidade, pela amizade e pela liberdade de pensamento e acção.   



quinta-feira, 27 de abril de 2017

7h55 da manhã -25 de Abril 1974



Bom,vamos lá para trás, só quarenta e três anos:
Lembro a nossa rotina, o duche, o pequeno-almoço tomado à pressa, a rádio ligada…nessa manhã não ouvimos os 5 minutos de ginástica do capitão, devia estar doente pensei, o homem nunca falhava, mas a hora não mudara, faltavam cinco minutos para as oito e a Teresa tinha que estar no liceu às oito e meia.
- Teresinha vamos, despache-se está na hora.
- Oh mãe vou já, estou a fechar a pasta.
Descemos a escada a correr, cinco andares sem elevador, só possíveis quarenta e três anos atrás. Enfiámos-nos no carro, o célebre Renault amarelo que toda a gente reconhecia. Pouco transito nessa manhã, muito pouco mesmo.
Chegámos ao Maria Amália mais que a tempo. Demos a volta ao edifício e com espanto vimos vários soldados em cima do muro…não percebi nada, e mais à frente mais soldados no outro muro. Parei o carro:
- Oh Teresinha vá lá ver o que se passa.
Lá sai a minha filha toda lépida, e volta a correr para o carro.
- Então o que foi?
- Oh mãe um golpe de estado, uma operação militar!
- Um golpe de estado? Ah vamos ver!
E lá fomos as duas no veículo amarelo gema, pelas ruas de Lisboa… mais à frente não se podia passar, voltámos, chegámos à Assembleia, ligámos a telefonia e ouvimos:
“Grândola vila morena…”
Foi há quarente e três anos atrás!