terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Linhas, agulhas e ponto pé-de-flor...




Não sei por que razão me veio à memória a D. Alice costureira. Recordava a minha infância e a D. Alice apareceu com certeza associada às tardes que a minha mãe me obrigava a passar na casa das tias e primas e que representavam para mim uma espécie de tortura lenta, um tédio que doía, uma sensação de enjoo e ao mesmo tempo uma promessa que eu fazia no mais íntimo de mim própria e que era, nunca, mas nunca, quando crescesse ser parecida com aquelas mulheres sem idade, que eu abominava. Penso que a minha mãe, aliás novíssima, deveria ter nessa altura uns vinte e quatro anos, quis, desde muito cedo, meter-me na cabeça que uma mulher nascera para ter uma vida enfadonha, monótona, cheia de tarefas imbecis, como cozer bainhas, pregar botões e fazer de conta que sabia bordar.
As tardes em casa da tia Florinda e da prima Alda eram sufocantes; obrigavam-me a ficar sentada numa cadeira baixa e tentavam ensinar-me a fazer ponto pé de flor…a única coisa agradável era a hora do chá. O marido da tia Florinda, o Sr. Salvador era dono da Pastelaria Versailles e o lanche era óptimo, pelo menos eu achava óptimo, muito embora estivéssemos em plena II Guerra Mundial e haver escassez de tudo e os géneros serem de péssima qualidade; mas havia um mercado negro florescente e tenho a certeza que o Sr. Salvador, não hesitava comprar no “paralelo”, para melhor servir os seus clientes.
Durante anos ninguém me convenceu a fazer uma bainha ou pregar um botão, o que deve ter contribuído em parte para o meu divórcio.
Mas voltemos à D. Alice; a D. Alice era a costureira lá de casa. Media menos de um metro e meio, era embirrenta, não bebia água e era casada com o Sr. Álvaro, embarcadiço que passava longos períodos fora.
Dois ou três dias por semana a D. Alice vinha trabalhar para nós: até aos meus onze anos tudo o que eu vestia, era “home made” pela D. Alice, e também tudo o que era preciso cozer, emendar, remendar, era da sua responsabilidade. À distância tenho a certeza que os meus vestidos eram feiíssimos, porque a D. Alice que era toda cuidadosa com os chamados acabamentos, não percebia nada de corte. Os vestidos eram escolhidos pela minha mãe e uma vez cortados e alinhavados tinham que ser provados. As provas eram em simultâneo um massacre e uma comédia; eu aproveitava para demonstrar a minha insubordinação às regras, pondo-me toda torta, sentando-me, ajoelhando-me, fugindo; pelo meio apanhava alguns tabefes da minha mãe e a D. Alice aproveitava para me dar alguma alfinetada, fingindo ser sem querer, o que provocava uma gritaria.
A D. Alice almoçava connosco à mesa, e essa era a hora ideal para eu me vingar. A presença do meu pai, que me achava a maior das graças, permitia-me algumas maldades, e eu sabendo da aversão que ela tinha à água, insistia para que ela bebesse e explicava que com certeza a razão de ela ser tão baixinha, se devia ao facto de nunca beber água e se as plantas precisavam de ser regadas para crescer, a explicação para a sua baixa estatura estava aí, falta de rega. A D. Alice ficava furibunda, olhava para mim com raiva e lá por dentro prometia-me uma alfinetada na primeira oportunidade.
E na minha cabeça iam ficando expressões como alinhavar, viés, cortar pelo fio, ajour, rematar, godés.
  
 O Sr. Álvaro, marido embarcadiço, voltava com a regularidade que as suas viagens permitiam e nos períodos em que estava em terra a D. Alice rejubilava. Não tinham filhos, o que não parecia incomodá-los e percebi mais tarde que o metro e quarenta e poucos da D. Alice não a impedia de desfrutar dos prazeres da carne. O que não sei porquê, era mais um motivo de risota para nós.
A D. Alice esteve connosco anos sem conta, fez os meus vestidos, os da minha irmã e mais tarde a roupa dos meus filhos, que lhe fizeram mil partidas que devem ter contribuído para apressar o seu fim; manteve-se embirrenta, baixinha obviamente e sem qualquer sentido de humor.

Mas a vida dá muitas voltas, e mal sabia a D. Alice que no dia em que resolvi ajudar a minha filha a decorar a casa, me vi a cortar tecidos pelo fio, a fazer enviesados, a rematar e alinhavar, a carregar no pedal e cozer à maquina, a fazer bainhas e franzidos e quando a minha filha absolutamente banzada com as minhas novas capacidades, me perguntou onde é que eu tinha aprendido a costurar, a minha resposta foi: “de ouvido com a D. Alice”. Finalmente a D. Alice vingara-se, silenciosamente, insidiosamente, ela tinha-me ensinado a pegar na agulha, a alinhavar, a cortar um tecido, e a ser, durante um período curto é verdade, uma dona de casa prendada!



Sem comentários:

Enviar um comentário