terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Hoje eu queria ter voz


Hoje eu queria ter voz e cantar, sentir que exprimia através desse instrumento só meu, tudo o que de mais profundo possa estar dentro de mim.
Cantar, a voz macia, ondulante, como uma carícia ou um grito de raiva, uma voz que se ouvisse…pensei talvez aprender a cantar, a modular, a pelo menos não desafinar… deve ser bom ter voz.
Contento-me com a escrita que é a minha voz silenciosa, com ela liberto-me, alegro-me, comovo-me, mas tenho a sensação que não chega, falta o som, o ritmo, a interpretação…
Que pena não ter voz e não precisar de papel, caneta, lápis…simplesmente cantar quando quisesse, quando me apetecesse chorar ou rir, desafiar, agredir, desabafar!
Escrevo, alguém ouviu? Alguém sabe o que senti ou sinto…

Que pena não ter voz!

Um lenço apertado na mão


O café é inóspito e frio, as mesas sujas, a luz branca fluorescente transforma-o numa espécie de morgue.
Ela está ali, só, pálida, fora deste mundo, os olhos fixos num ponto perdido, aperta com força um lenço que enrolara na mão. O lenço está manchado de sangue, muito sangue que agora escorre sem controlo. A mulher está ainda mais pálida e a cabeça bate com força no tampo da mesa. O café frio entorna-se e mistura-se com o sangue.

A mulher já não se mexe…não vem ninguém, não tem ninguém. Morre como viveu…só!

Sentir a felicidade




Se pensarmos, se quisermos racionais, sérios, adultos, chegamos à conclusão que temos razões para nos sentirmos felizes.
O mal é querer que a felicidade seja duradoura, um bem adquirido. A felicidade é feita de momentos, de retalhos, às vezes de migalhas. Somos ambiciosos demais na felicidade e desprezamos os sinais, mesmo pequenos, que ela está ali, ao nosso lado, à nossa espera.
Hoje repito a frase dita por um amigo:  “Le malheur de t’avoir perdu, le bonheur de t’avoir connu”. A felicidade de ter conhecido a felicidade, só nos pode dar a certeza que podemos agarrar na nossa memória o sentimento, a emoção e reencontrá-la.
Às vezes passam tempos em que temos a sensação que ela fugiu e que não a recuperaremos nunca mais.
Penso, sem poder pensar, sem poder imaginar, sem poder sentir, achando quase um sacrilégio poder pensar, naqueles que há setenta anos viram abrir-se as portas de Auswich, de Dachau, aqueles que sobreviveram, aqueles que um dia voltaram a sorrir…

É preciso tornar a felicidade mais próxima, relembrar, reconstruir. Apagar, sim apagar muita coisa, mas agarrar um sorriso, um raio de luz, uma flor que se abre, um pingo de chuva. Agarrar a vida, e sublinhar todos os dias, os momentos, os segundos em que ela estava ali. Fiel e fugidia.