domingo, 2 de outubro de 2016

Reflexão



Estava ali sentada na cadeira do quarto do hospital. Olhava o Brian que adormecera e deixei soltar os pensamentos que sem cerimónia me invadiram.
Confrontada comigo própria, ouvi-me a perguntar…”afinal quem sou eu?”
Dois lados que se cruzam, um lado sério, corajoso, resistente, e outro lado irónico, às vezes sarcástico, quase impiedoso, critico, pronto a rir, inteligente e divertido. É esse o lado mais importante daquilo que eu sou. Sem ele já teria colapsado, não encontraria força para resistir às perdas, lágrimas, aos medos e inseguranças. É esse equilíbrio entre o sério e o não sério, o leve, o atrevido, ousado que faz de mim o que sou.
Quero ser ou quis ser outra? Houve tempos em que me desconhecia e que me procurava, sabendo o que não queria, mas sem perceber o que queria. Não, não é verdade. Procurava a paixão, sem restrições ou fronteiras e encontrei-a e tudo o resto que ela arrasta na sua corrente vertiginosa.
Quis a paixão e tive-a, desesperei-me, chorei, enraiveci-me, senti o chão a fugir, mantive-me de pé, não porque tivesse decidido, não por um acto de coragem, simplesmente porque continuei, esfarrapada, dorida, mas viva.
Viva e sem saber, desperta, desperta para voltar a amar, aberta à vida, reconheci então a minha capacidade de resistência.
Hoje choro a partida do Brian, o adeus para sempre, o até nunca mais. Encontrámos-nos num momento em que ambos precisávamos de paz, equilíbrio e ternura. Começámos um caminho que não sabíamos, nem nos perguntávamos onde nos podia levar. Demos as mãos e segurámos com força a oportunidade que o acaso nos oferecia, e assim passaram quarenta anos. Sem paixão? Também foi uma pergunta que não fizemos. Ambos tínhamos um passado, histórias vividas,  histórias que nos tinham construído, e que eram nossas, só nossas, de cada um de nós. E não deixámos que elas entrassem no nosso presente, que o envenenassem mesmo sem  querermos. E assim os anos foram indo, partilhando, unindo, às vezes com lágrimas, outras vezes com gargalhadas, cúmplices na vida, no amor, no desejo, houve tantos “together”. E agora aqui estou de mãos vazias, sem o teu ombro, sem os teus hábitos, sem o teu olhar, sem ouvir “darling”…
O tempo cicatriza, eu sei, mas é isso mesmo cicatriza, fica a cicatriz, a marca indelével de tudo aquilo que foi e já não é e não voltará a ser nunca.


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Antes que o corpo se esqueça...



Os dedos das mãos entrelaçaram-se formando um nó, que ambos reconheceram como um sim, um consentimento, uma declaração de amor silenciosa e intensa.
Teo puxou Lara para si, sentiu o seu corpo encostado ao dele, quente e expectante. Devagar, como se o tempo tivesse parado e que a eternidade fosse possível, passou um braço pelos ombros de Lara e com a outra mão afagou-lhe os cabelos, os dedos percorrendo lentamente os fios sedosos e dourados, ao mesmo tempo que lhe beijava as pálpebras, o rosto, o pescoço; primeiro leve, muito leve, como se quisesse gravar nos lábios para sempre, a maciez e o perfume da sua pele; depois o abraço tornou-se mais forte, e Teo beijou-lhe a boca, com a intensidade do desejo que acumulara ao longo daquele mês, em que ambos se tinham envolvido num jogo de sedução e conquista, sabendo desde o início que seriam traídos pelos seus próprios corpos.
Beijaram-se com sofreguidão, quase com violência, demoradamente. Os lábios húmidos, entreabertos, prelúdio de um cântico de paixão e prazer a que se entregavam sem medo.
Com movimentos delicados, desapertou-lhe os botões da blusa, sentiu a redondez dos seios, a pele aveludada, a curva das ancas; Lara encostara a cabeça ao ombro de Teo e com as mãos acariciava-lhe o peito, os braços, beijava-lhe o pescoço e sentia na língua o gosto salgado da pele daquele homem másculo, sensual e sensível, que entrava agora  na sua vida.
Teo segurou-lhe a mão e levou-a até à cama, grande, larga, convidativa com lençóis brancos e sedosos; correu os cortinados de seda azul e acendeu um pequeno candeeiro que deixou filtrar uma luz suave e dourada. Olhou para Lara e para o seu corpo lindo e nu, as pernas longas e bem torneadas, os seios firmes e redondos, a cabeleira loura solta na almofada, os olhos azuis violeta semicerrados, os lábios doces como fruta. Sonhara com aquele momento, noites e noites acordara, achando que Lara tinha fugido, que não iria voltar a encontrá-la; e agora ela estava ali, esperando por ele, o desejo solto como um potro selvagem, o corpo enfeitiçado. Deitou-se sobre ela, acariciando-a, beijando-a, as mãos percorrendo todo o corpo, a boca, a língua, demorando-se nos seios, nos mamilos, no ventre, ao mesmo tempo que lhe sussurrava palavras de desejo e paixão.
  
Lara entregou-se como uma deusa pagã, livre e intensa, procurando, encontrando e reencontrando o prazer, o corpo flexível em perfeita harmonia com o de Teo, os dois gemendo de amor e depois nos braços um do outro, quando saciados e exaustos, procuravam uma pausa feita de silêncio e ternura.
O mundo desaparecera lá fora; nada mais existia a não ser eles, e o perfume raro e único, mescla sensual de madeiras e flores, impregnado com o cheiro dos seus corpos húmidos e acalmados.
Lara procurou guardar na memória, esse aroma excitante e provocador, oásis perfumado no qual se poderia abrigar, que era só dela e ao qual ninguém mais teria acesso.



terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Sonhos lógicos?

Não era novidade, os sonhos eram sempre disparatados, reflectindo medos, inseguranças, aparecendo e desaparecendo, trazendo de volta a angústia, a ansiedade.
Surgiam ao acordar quando o cérebro ainda meio ensonado mistura tudo e diverte-se a meter-lhe medo, sem que pudesse cravar as unhas no sonho e fazê-lo sangrar até à exaustão.
E quando acordava, desperta mas conseguindo ainda lembrar passagens dos sonhos que não queria ter, tinha a consciência vaga que tudo aquilo afinal era lógico e fazia sentido.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Homenagem a uma mãe extraordináruia

Meus Queridos

Talvez estranhem esta minha carta, mas vocês eram muito pequenos para perceberem o maior presente que a vossa mãe vos deu.
Agora que a ausência já não é sentida como intolerável, podemos fazer as pazes com a dor e lembrar com alegria o amor da vossa mãe, e é tão bom, tão reconfortante saber que fomos amados de verdade!
A doença era fatal, ninguém quis acreditar quando soubemoso diagnóstico. Pensámos sempre que a medicina seria capaz de a salvar.
Não foi assim e ela sabia-o, e quando lhe pedi para desistir da viagem que tinha prometido fazer com vocês, disse-me: “Todos morremos, não é? Uns mais cedo, outros mais tarde, eu vou com eles é a última coisa que lhes posso dar.” 
Foi e ofereceu-vos o sorriso, a companhia, a ternura, como se tudo estivesse bem, como se as noites não fossem dolorosas, como se nada fosse mudar.
Passaram a última semana juntos, passearam, brincaram, riram. Voltaram felizes e ela sorria também. Tinha sido capaz, aguentara a dor sem que ninguém percebesse, sabendo e sentindo que o fim estava próximo. 
Poucos dias depois já não estava mais connosco.
Foi um presente maravilhoso, que só uma mãe extraordinária vos poderia dar e por essa razão escrevi esta carta para que não se apagasse nunca da vossa memória a lembrança dessa dádiva sem preço que a vossa mãe vos ofereceu.

Avó 



Anoitecer


Era o momento do dia que mais gostava, o começo de uma noite de Verão. A cidade parada, as ruas quase vazias. Maria respirou fundo, sentiu o cheiro das madressilvas e deixou-se penetrar pelo silêncio.
A lua agigantava-se no céu ainda azul, dentro de pouco tornar-se-ia escuro, muito escuro.
Não tinha medo da noite, em pequena sim, queria sempre uma luz acesa que lhe permitisse reconhecer onde estava, as prateleiras com as bonecas, o urso de peluche aos pés da cama, o tapete felpudo.
“É engraçado sem nos darmos conta caímos na infância”. A sua infância. As pessoas gostam de pensar que infância significa ser feliz”. Não fora assim tão feliz, confortável sim…Chega deixa-me virar a página.”
Caminhava agora pelo jardim que aquela hora não tem ninguém, só se ouvia o grasnar dos patos no lago. Sentou-se naquele banco quase escondido, de baixo do cedro centenário e deixou o pensamento flutuar ao sabor dos cheiros da noite.
A madeira era velha e rugosa, pousou as mãos distraidamente sobre as tábuas e sentiu que havia algo. Procurou ver. Um envelope, alguém deixara ali uma carta. Pegou com cuidado e tentou ler, estava demasiado escuro, não conseguiu. “ Vejo em casa e depois logo decido”
A curiosidade fê-la levantar-se, o seu pensamento estava agora concentrado naquele envelope fechado.
“Que estupidez, se calhar é uma simples carta comercial sem qualquer interesse.”
Mas estranhamente a curiosidade agudizava-se. À luz do candeeiro da rua, olhou o envelope amarelado pelo tempo; era uma letra elegante, feminina, endereçava a carta a Eduardo Sousa Menezes. No remetente o nome: Maria Luísa Cabral.
Maria parou, não queria acreditar; Eduardo Sousa Menezes, o seu pai.
“Não vou abrir, não posso, não tenho esse direito, não quero.” Rasgou-o lentamente, voltando as costas ao seu destino.

 Helena Barradas