quinta-feira, 11 de junho de 2015

O ultimo café

Era tão delicada que o fez estremecer.  A voz suave daquela mulher era-lhe tão pouco habitual que virou a cara com medo de a enfrentar. Sentia-se incapaz de a olhar de frente, aliás não olhava ninguém de frente; fingia-se distraído, dizia qualquer coisa sem graça e saía de perto para não ser confrontado com uma pergunta directa.
Tinha horror à sinceridade e à espontaneidade. Disfarçava as suas fragilidades vestindo-se bem, sempre com as camisas impecavelmente passadas, as gravatas sóbrias e fato escuro de bom corte. Quem o via até era capaz de o achar “distinto”, quem o conhecia tinha-lhe asco. Não hesitava em inventar calúnias e a puxar o tapete aqueles que lhe faziam frente: Tortuosamente, insinuava, dizia que tinha ouvido, que tinha visto e minava a reputação e o trabalho dos outros.
O “chefe” achava-o imprescindível, competente e fiel. Fiel? Não, subserviente, sem coluna vertebral, um verme.
Sabia-se odiado, mas protegido pelo chefe mantinha um sorriso falso, às vezes o nervosismo fazia-o gaguejar. Nas costas os colegas imitavam-no e estalavam as gargalhadas. Adivinhava que se riam dele, mas sabia que se poderia vingar pela calada.
E agora aquela voz, não sabia o que fazer… há muito que ninguém lhe falara com gentileza, esquecera-se do significado da palavra.

Tinham passado vinte anos. José chegava ao fim de uma carreira sem brilho, gaguejava muito mais e o cabelo ralo dava-lhe um ar de cão rafeiro.
Naquele tempo em que o chefe o protegia, achava-se intocável e tivera a ilusão que poderia durar para sempre.
Depois houve a entrada da Drª. Bárbara para a chefia do departamento. Ficara deslumbrado e apaixonou-se perdidamente. Não ela. Inteligente, viva, intuitiva, feminina, Bárbara percebeu a paixão e usou-a. José passou a ser uma espécie de escravo, os relatórios mais enfadonhos, as tarefas mais burocráticas, eram da responsabilidade dele. Bastava-lhe falar na sua voz suave, um pouco rouca e passar os dedos pelo cabelo louro: “O José não se importa pois não?” E ele ficava no escritório, trabalhava horas e horas, só para ouvir: “Você é um querido, obrigada.” 
A atmosfera ficara menos tensa e mais arejada. Bárbara não permitia a intriga, as insinuações, cortava o mal pela raiz.
José reduziu-se à sua insignificância. Os anos passaram e hoje seria a última vez que ela lhe pediria na sua voz suave:  “Não se importa de me preparar o café?”



quinta-feira, 4 de junho de 2015

Caixa de madeira tosca



A caixa estava ali, em cima do banco, indefesa, sozinha. Alguém a esquecera. Vera aproxima-se fascinada, como que hipnotizada. Tem que chegar antes que alguém a veja; segura-a com ambas as mãos, a madeira está envelhecida, a pintura estragada. Talvez tivesse sido dourada em seu tempo. Um fecho e um pequeno cadeado. É leve, o que está dentro não tem peso. Aquela caixa só pode conter segredos.

Deseja chegar a casa e poder abri-la. Sim, são cartas que estão lá dentro. Há um leve cheiro a rosas, suave e feminino. É um pequeno maço de cartas, todas escritas pela mesma pessoa. Uma mulher perdidamente apaixonada. Vera sente-se a entrar na intimidade de dois seres que se amaram, mas que a vida separou cruelmente.

Há um envelope mais pesado, abre-o com cuidado. Lá dentro estão duas fotografias. Numa, o rosto de uma mulher nova de cabelo solto e um sorriso lindo, noutra a mesma mulher, agora de pé, à porta de uma casa. Atrás está escrito:
“Voltei à nossa “casa”, quis fixar a imagem para sempre”. A carta diz mais, muito mais, Vera tem dificuldade em acreditar:
“Pedro meu amor,
Foi aqui que nos amámos. Foi aqui que marcaste o meu destino para sempre. O filho que agora espero, terá o teu nome, é a única forma de assegurar que poderei expressar o meu amor, sem que ninguém perceba ou entenda. Poderei pronunciar o teu nome vezes sem conta, acariciar-te os cabelos, abraçar-te.”

Vera olha detalhadamente a fotografia, reconhece a casa, o alpendre, a varanda. A casa de Sintra onde a Avó Maria gostava de passar férias sozinha, e a verdade imensa, esmagadora, surge-lhe. As lágrimas correm soltas. Fecha a caixa e guarda-a em lugar seguro.
  
No dia seguinte na estação vê um pequeno anúncio:
“A quem achou um caixa de madeira tosca…”
Observa à sua volta e repara num velho senhor de cabelo branco que olha ansioso a multidão. Aproxima-se e pergunta-lhe:
- Perdeu alguma coisa?
Admirado o velho senhor de cabelo branco volta-se, tem uma expressão triste. Vera segura-lhe a mão e diz baixinho:
“Encontrei o seu tesouro, venha comigo.”


Não mexe uma palha

Faz um calor abrasador. Não mexe uma palha.
Uma miúda caminha sozinha pela berma da estrada, nas costas a mochila da escola, a cabeça protegida por um pequeno chapéu de palha. Tem ainda um quilómetro a percorrer até chegar à paragem do autocarro que passa de hora a hora.
Todos os dias a mesma rotina. São mais de vinte minutos a pé, de manhã e ao fim da tarde. Hoje está cansada; a paisagem é seca e desoladora, só uns miseráveis chaparros aqui e ali; gosta mais quando o trigo está crescido e dança ao vento. Mas agora nem vento há. O que lhe vale é gostar da escola, senão não vinha mais.
Os pais moram longe, lá no monte isolado, não sabem ler, nem escrever, mas mesmo assim apoiam a filha. É esperta, viva e gosta de aprender.
De repente sente um barulho de um motor, mas não é o autocarro;  é uma moto pequena que se aproxima e para junto dela.
“Não gosto disto”, pensa, Maria apressa o passo e ouve “Maria, eh Maria, sou o João da tua aula, não tenhas medo”.
Suspira de alívio e volta-se para se certificar que é mesmo o João.
“Que é que tu queres? Nunca passas por aqui…”
“É raro, mas vim ter contigo, com este calor tive medo que te sentisses mal. Vem Maria, dou-te boleia até casa, só te quero ajudar.”
Maria hesita, gosta do João, é bom rapaz mas mesmo assim…
“ Vem Maria, põe este capacete, levo-te a casa.”
E lá vai Maria, sentindo o vento quente na cara, nos braços, nas pernas. Nunca tinha andado de moto.
“É giro", pensa e agarra-se com força ao João que a deixa à porta de casa, afogueada, despenteada e feliz.
Nunca mais vai estar sozinha na paragem do autocarro.


terça-feira, 2 de junho de 2015

Vertigem

Deixou que ele entrasse na sua vida, abriu as portas à paixão e ao desejo. Não sabia, não queria saber se havia futuro. Só o presente contava no tumulto das emoções. Cada dia a aproximava mais do fim, e  o fim seria demasiado doloroso,
O passado esfumaçava-se na voragem do presente. Presente que se transformava em passado a cada minuto.
Tudo os separava e tudo parecia uni-los. A crueldade dos encontros desencontrados. O fim, a coragem para abrir a porta e dizer adeus.
Adeus ao presente e saber que o futuro acalmará o que não se quer acalmar, o que não se quer esquecer. Guardar na memória o perfume perturbador, silencioso, capaz de despertar emoções e sentir-se despedaçada pela ausência.
A porta está ainda aberta, as mãos agarradas mas os dedos soltam-se. "Não posso esquecer.-te. Foi tudo demasiado importante.". "Quero acreditar no destino.".
 Em silêncio ela olha o destino que agora se afasta...

"Adeus"

Sozinha em casa no silêncio e penumbra do anoitecer. O livro aberto à espera que ela lhe pegue, o acaricie e comece a ler. Faltam poucas páginas e isso entristece-a. Vai deixá-lo, separar-se dele, arrumá-lo na prateleira.
Sente um som leve no vidro da janela. Levanta os olhos distraída. Não está ninguém. "Estranho", pensa e ouve de novo o tamborilar dos dedos...leve quase inaudível.
Ninguém...e ainda outra vez o barulho leve e insistente. Abre a janela, do outro lado nem sombra.
Percebe então que era a personagem do livro a dizer-lhe "adeus".