sábado, 1 de novembro de 2014

A carta aberta...


Estivera a arranjar as gavetas da secretária. Mantinha, arrumadas por ordem de datas todas as cartas que ele lhe escrevera durante os anos que durara aquela paixão avassaladora. Não as abria nunca, pegava no molho, acariciava-as com os dedos e voltava a pô-las no lugar.
Nesse dia não resistiu, tirou com cuidado duas cartas, procurou-as pelos selos, ambas tinham sido escritas em Itália e reflectiam de forma quase violenta, o sentimento de ausência, o desejo avassalador, o tormento da separação.
Leu-as emocionada entre a raiva e a frustração; nunca, nunca aceitaria a ruptura, o desencontro…
Restavam-lhe as cartas, mas lê-las queimava-lhe a alma, abria feridas, sangrava. Não queria ler mais, fechou uma, deixou outra aberta sobre a cómoda; não tinha conseguido chegar ao fim, precisava de a ler mais uma vez. Saiu do quarto, triste, estonteada, já não sabia onde estava, recostou-se na cadeira e fechou os olhos, adormeceu.
Filipe não a viu quando chegou, costumava encontrá-la no jardim, ou na sala a ouvir música.

Procurou-a no quarto, olhou à volta, a carta aberta em cima da cómoda, começou a ler e sentiu que a vida lhe fugia das mãos, que entrava ser querer no passado e intimidade da mulher que amava… e ela, será que o amava também?

3 comentários:

  1. Agradeço a generosidade de permitir anónimos a comentá-la.
    Conheço a Lena desde a nossa juventude e, visitando o seu blog, dou-me conta de como a sua escrita é tão intensa como o era (e ainda é, certamente) a sua figura, que recordo bem.
    O tema sugerido neste artigo é perturbador porque todos (as) guardamos fantasmas que insistem em reaparecer. Sejam memórias que reconfiguramos, quase sempre de forma distorcida, sejam textos que lemos fora do seu tempo
    .
    Não tenho saudades da nossa juventude, nenhumas.
    Prefiro o tempo que se acende todos os dias, sempre novo, como uma promessa.
    Desejo-lhe muito tempo deste, para nos deixar encantados (as) com a sua escrita.
    MJ

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    1. Ao meu leitor Anónimo. Conhecemos-nos portanto há muitos anos. Lena só me tratam aqueles com quem me cruzei ou encontrei na juventude da qual também não tenho saudades. Era tão ignorante. Gosto e fico sensibilizada com as suas observações sobre o meu texto e a minha "intensidade". Hoje não me importo com os fantasmas que surgem ou reaparecem, convivo bem com eles. Houve outro tempo em que não. Sabedoria? Talvez. Achei interessante considerar-me generosa por aceitar comentários anónimos. Prefiro o anonimato ao pseudónimo é apesar de tudo mais sincero. Obrigada.

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  2. Da sua leitora, que não usa as redes sociais, aqui vai uma explicação:
    A Lena - o deslumbre da Praia das Maçãs - um primo meu e outros jovens que formavam um grupo cheio de charme estival, representavam o que de mais fascinante eu conhecia nos anos 50.
    Hoje, admiro o charme a que chegámos nesta nossa nova idade. Qualquer que tenha sido o percurso, quaisquer que tenham sido as escolhas.
    Pacificada, como a Helena, aguardo todos os dias novas ordens.
    Saudades
    MJE

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