terça-feira, 29 de outubro de 2013

Uma aldeia isolada


Começava a ser difícil subir a encosta até à pequena casa onde vivia Fernão. Desde a morte da mulher que a tristeza o invadira e era a custo que se deslocava até à aldeia para adquirir o indispensável para sobreviver.
Às vezes o Fiel acompanhava-o, mas começava a estar velho e frágil, preferia ficar deitado ao pé da lareira sobretudo agora que os dias estavam mais frios e as noites geladas.
Fernão puxou o capote para se proteger do vento agreste. Faltavam ainda uns cem metros, os mais difíceis, o caminho era ingreme e irregular.
Vivera sempre naquele lugar perdido, mas gostava da paisagem dura e impiedosa, do barulho das águias e da água que caía sobre as rochas. Francisca dera-lhe dois filhos que partiram rumo às Américas. Nunca mais tinham voltado. Mas Francisca era a luz da sua vida e tudo era suportável quando reencontrava o seu sorriso e quando na intimidade do pequeno quarto soltava os magníficos cabelos loiros e se abraçavam ternamente.
Por Francisca mantinha-se vivo, sabia que ela não lhe perdoaria qualquer acto tresloucado. Quando a voltasse a encontrar queria ter a certeza de estar em paz.
Abriu a porta da casa. Lá estava o Fiel enroscado que apenas abanou o rabo. Pousou o saco sobre a mesa de madeira, tirou as botas e deixou-se cair na cadeira. A madeira ainda ardia e do forno do pão chegou-lhe o cheiro quente e pacificador.
“Francisca, Francisca deixa-me partir…não sou nada sem ti e ninguém precisa de mim.”
Ouviu bater à porta; não, não era possível ninguém o visitava. Era um bater leve mas insistente. Abriu, um garoto de caracóis negros pediu-lhe para entrar.
“Tenho frio, disse-lhe, e senti o cheiro do pão”.



Palavras perdidas



As palavras tinham-se perdido, quase já não se lembrava dos sons. A vida levara-lhe tudo: a casa, a mulher, os filhos. Perdido na sua imensa solidão, sem ter coragem para acabar com o sofrimento, sobrevivia com o que era distribuído no centro de abrigo.
Não se atrevia a pensar no passado, seria intolerável, vagueava como um pedaço de madeira carcomida ao sabor das ondas. Alguém lhe levara também o cão, a única companhia que lhe restava. Demorava a chegar a hora em que tudo acabaria. Resistia, sem querer, sem ser capaz de dizer não. Durante toda a vida nunca soubera dizer não e talvez por isso ali estava sentado no vão daquela escada à espera.
Não queria viver, não sabia se queria morrer.

A neve caía cobrindo tudo à sua volta, a ele também, agora vestido de branco, macio e frio para sempre.

domingo, 27 de outubro de 2013

Serial Killer


A cadela era doida varrida, linda também. Uma setter ruiva, nervosa, indisciplinada e um verdadeiro terror para a vizinhança. Não porque fosse perigosa, mas porque não havia bicho de penas que lhe resistisse. Blondie chamava-se a setter.
No Verão quando a família se mudava de armas e bagagens para a casa da praia, a Blondie talvez excitada pelo ar do mar e o vento fresco da serra, entrava em perfeito delírio. Teria inspirado Hitchcock pelo suspense que criava cada vez que saltava a cercania e cavalgava, sim porque não corria, cavalgava, e cheirando penas ao longe, lá ia ela à procura da próxima vítima. Pintos, galinhas, patos, todos estremeciam à sua passagem, um deles sabia que tinha chegado a sua hora. E lá voltava a Blondie galopante e triunfante com penas a voar da boca e um piar lancinante da vítima inocente.
A Blondie fez voar um bando de perus que aterrados e espavoridos se refugiaram nos pinheiros mais próximos, horrendas aves pesadas, deslocadas do seu habitat natural e que se recusavam a descer dos ramos onde a custo se tinham abrigado.
As queixas eram muitas e a mãe, dona da setter caçadora, lá ia conseguindo driblar os pobres dos proprietários das aves assassinadas. A Blondie era uma serial killer.
O Sr. Conde, vizinho próximo, dizia-se que comprara o título no Vaticano por bom dinheiro, cioso da sua nobreza e da casa apalaçada recentemente adquirida, tivera a ideia grandiosa de colocar no lago do jardim, dois magníficos cisnes brancos que importara de Inglaterra. Claro que a Blondie os farejou, os cercou, os amordaçou e os pobres sucumbiram. E eis que quando mãe e filha todas aperaltadas de renda e tafetás, capelines de palha na cabeça, prontas para o casamento do sobrinho e primo querido, vêm surgir um conde espumante e furibundo, gesticulando e ameaçando a mãe de várias maneiras.

A cena era insólita, ao mesmo tempo ridícula, disparatada, e as gargalhadas explodiram irresistíveis, as capelines estremeceram, e o conde olhou com desprezo para as duas. “Pobres plebeias”, disse entre os dentes.

O bule de prata


Escolher um objecto, preferido de preferência!
Um objecto – não alguns. Só um é difícil,  um objecto do qual eu tivesse gostado muito, levou quase sempre à compra de outro objecto parecido, da mesma família, da mesma cor.
São pequenas colecções: os bules, a cerâmica persa, azul e frágil, os vidros azuis.  Destaco um?
Não posso, não amo só um, é o todo, a diversidade, o tempo, a época, a circunstância.
Pergunto a mim própria, se fosse obrigada a escolher qual seria o meu preferido? Olho-os com curiosidade e alguma distância.
Imagino-me a partir, e a ter que me despedir daqueles objectos que correspondem a etapas da minha vida, a gostos e a contra gostos. Destaco o bule de prata, antigamente usava-o, depois achei que ele estava cansado e pu-lo a descansar junto com os outros. Não sei se gostou, sobretudo porque o substitui pelo de barro vidrado, “british” sim, mas não aristocrático.
“És tu o escolhido, ficavas lindo quando te limpava com um produto especial e depois te secava e polia com uma flanela macia. Vens comigo e serás o fio condutor de todas as recordações e lembranças. Escolho-te porque és único, elegante e distinto e me serás fiel até ao fim. Não te vais partir, a tua tampa não se quebrará em mil pedaços.
Escolho-te e isso liberta-me, digo adeus a todos os outros, sem lágrimas, mas triste. É sempre triste dizer adeus, sobretudo quando nos despedimos de nós próprias.



sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Arco-íris



Dizia, repetia, barafustava, detestava grafitis, achava um vandalismo, uma porcaria.
Nessa manhã luminosa de Inverno, caminhava apressada pela rua larga, o muro era branco e alto e só depois apareciam as árvores que suavizavam a paisagem.
O muro era branco, hoje já não era, alguém pintara um arco-íris num céu azul, a meio o arco-íris desfazia-se e as cores escorriam pelo muro que fora branco. Em baixo uma legenda:
“A esperança desfez-se em lágrimas de cor!”

Parou, olhou, voltou a olhar...afinal talvez não detestasse tanto assim os "grafitis".

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Joaquina Vanessa


Joaquina Vanessa (Jaquina como é conhecida) estava no auge da felicidade.  O Vladimir, Vlad para os amigos, acabara de lhe enviar uma mensagem. Joaquina Vanessa lia e relia para acreditar que era verdade. Logo o Vlad aquele mulatão alto e de andar gingão que parecia não a ver: “Linda, deixas-me nervoso, a tua boca é um rebuçado, os teus olhos caramelos e tu és boa como o milho.”
O coração pulava dentro dela, as unhas de gel cor de rosa desembaraçavam o cabelo cheio de caracóis bem marcados com laca.
Vai vê-lo logo à noite no café. Respondo à mensagem, perguntava a si própria. Sim, é melhor responder.
“Vlad, não me digas mais nada senão eu morro, o meu coração não aguenta.”
Veste a blusa de licra vermelha decotada e bem colada ao corpo, escolhe a saia mais mini e lá vai ela de saltos altos, cabelos até à cintura. Sim lá está o Vlad, camisa aberta no peito, calças de ganga descaídas, ténis de verniz pretos e brancos.

Jaquina Vanessa treme, escorrega e estatela-se no chão. Levanta-se a custo e a coxear sai pela porta fora a chorar!

Origens



Encontrar a terra ou a água que nos corre nas veias, que nos faz perceber melhor quem somos e para onde vamos. Há os que se perdem porque as raízes secaram, outros que renegam a origem, outros ainda que estonteados não sabem qual é o caminho.
A terra, a água, as rochas abruptas e o mar. Misterioso, profundo. Arrastando-nos na corrente ou deixando-nos exaustos na areia.

Entre o mar e a terra, procuro o início, sou alga ou árvore? Granito ou areia? Barco à deriva à procura de um porto.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O escadote

Só 50 palavras - verbos: fugir, miar, afligir; obrigatórios

O gato da Miss Jenny fugiu para cima da árvore e estava a miar. Miss Jenny afligiu-se “Onde está minha escadota? O cat está miando”. Alguém traz o escadote. Miss Jenny sobe rápida e eis que senão quando já com o cat nos braços o escadote parte-se. Oh, oh,oh!

O meu querido cão



Olhou para trás, procurando os donos. Como se soubesse que eles nunca o abandonariam. Magro, sem forças sequer para se levantar, uma sombra triste do que tinha sido.

Não restava outra solução, ele merecia morrer com dignidade. Olhou-nos novamente quando lhe deram a injecção. Acariciamos-lhe a cabeça até ao fim. Fechei os olhos e viu-o cheio de vigor a correr no jardim.

Uma gota de água



Abriu a janela de par em par, a luz intensa da manhã fê-lo fechar os olhos. O silêncio era absoluto, só uma leve brisa e o cheiro forte do jasmim davam vida àquele lugar. Todo o resto mais parecia um cenário.
Olhou à sua volta, as madressilvas no fim do jardim, as árvores carregadas de flores brancas, prenhes de todos os frutos que estavam para nascer.
No lago os nenúfares dormiam ainda. A água parada, transparente e límpida, como se nada ou ninguém pudesse alguma vez mudar fosse o que fosse. Das folhas das roseiras cai uma gota de orvalho, formam-se círculos, um pássaro pousa na beira do lago, mergulha o bico e sacode a cabeça, parece gostar.

Ele sorri, não, não é cenário, é o jardim da sua infância perdida e julga naquele momento ver reflectida na água a imagem da sua mãe querida.

O navio afasta-se



O navio afasta-se lentamente do cais, as silhuetas ficam cada vez mais indistintas e na memória dos que partem só fica o ronco da chaminé a anunciar a partida.
O mar é escuro, profundo e misterioso, o navio entra nele sem medo, mas atento; à frente está a travessia que se anuncia longa e talvez perigosa. Os dias passam iguais, mar e mais mar, água, espuma, nuvens brancas ou negras, um céu que de vez em quando muda de cor e se torna ameaçador.
Instala-se um sentimento de melancolia, o entusiasmo do início desaparece para dar origem a uma sensação de cansaço e claustrofobia. Há romances que começam, outros que acabam, há traições e mistérios.
As nuvens agitam-se cor de chumbo e as ondas balançam o navio, mais, cada vez mais, varrem-no de lado a lado, da proa à ré, de bombordo a estibordo, violentamente. Uns rezam, outros choram, outros aterrados, esperam. Uma noite de inferno. O navio e o mar, uma luta desigual, as ondas ainda, triunfantes, violentas.

O vento acalma e o navio entra finalmente no porto. Terra enfim; descem os primeiros passageiros, cambaleantes, pálidos, lá em baixo abraçam como zumbies os que os aguardam. Balançam na terra como se estivessem possuídos por uma força misteriosa.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Botox ou não botox, eis a questão

Very short story
Personagens:

Victória - Mulher 50/60 anos obcecada com a aparência
Ana - Filha 
Luigi - Italiano aventureiro

Victória veste-se como se tivesse 20 anos. Obcecada com a aparência, várias operações estéticas, botox, liftings; pouco resta do rosto original. Move-se no mundo do jet set, onde tudo o que parece não é. Procura a eterna juventude, só tem presente, porque apagou o passado e não quer o futuro. Marionete nas mãos dos cirurgiões plásticos que há muito plastificaram a sua cara.
Mais um cocktail, inauguração da loja Adrap. “Ainda bem que o tempo está quente”, pensa Victória. “Assim posso usar o vestido mini e as sandálias Blanik.
O cabelo solto pelos ombros, ela e a filha são tão parecidas. Pernas altas, olhos azuis.
Victória vive para as festas, os cocktails, as inaugurações, é esse o seu desígnio de vida. O espelho reflecte-lhe um rosto inexpressivo, repuxado, uma boca cheia de botox, que ela acha irresistível.
“Acho tanta graça quando me confundem com a Ana.”
Ana olha confrangida para a mãe, que já não tem idade para se vestir daquela forma e cujo rosto é uma imitação do que já fora.
Victória tinha perdido a auto-critica, e quando Ana lhe dizia “Oh mãe mas esse cabelo, parece uma Barbie, já não tem idade para isso..”
“ A menina é uma parva, não vê que não tenho uma ruga e agora que refiz as maminhas já posso usar decotes mais fundos.”
“Oh mãe, já pensou que eu posso sentir alguma vergonha?”
“Sinto-me jovem Ana, sou jovem e adoro que me achem jovem.”
Ana encolheu os ombros, perdeu a esperança de convencer a mãe que gostaria de ver umas rugas, uma marca de vida, que ela teimosamente apaga.
Victória está pronta, patética figura inexpressiva e estereotipada . Acha-se chique, super chique, moderna, ousada.
A passadeira vermelha espera os convidados. Victória bamboleando-se nos saltos altíssimos, sorri à direita e à esquerda.
“Olá querida, olá querido!”
Repara num homem novo que lhe lança um olhar irónico. Não o conhece, quem será, pensa. “Mas é lindo”. O homem lindo fixa os brilhantes, o colar, os brincos.
Victória estremece, o homem sorri e aproxima-se:
“Victória Magalhães?” “Sim, como sabe o meu nome?”
“Das revistas sociais, você aparece sempre e não é fácil esquecê-la”.
“Mas nunca o vi antes…”
“Vivi alguns anos em Itália. Regressei há pouco. Luigi Benedetti, é um prazer conhecê-la.”
“Italiano?”
“Sim, a minha mãe, de Florença...”
Victória sente-se no céu, nas nuvens, num lugar qualquer etéreo e transparente.
Há muita gente, muitas saias curtas, muito sorrisos com botox, muitos cabelos cheios de extensões, muitos homens de camisa branca sem gravata “à la Tom Ford”.
Luigi acompanha-a, sorri, segura-lhe o braço pelo cotovelo, a mão é quente…
Victória sonha.
Acorda no quarto de hotel. De Luigi nem sombra. Levanta-se estremunhada…a taça onde deixara os brincos, os anéis, o colar, está vazia…



Melancolia


A folha em branco. A angústia de a preencher com toda a tristeza que me invade. A tristeza quase felicidade de assim apagar a solidão.

A saudade caminha lado a lado com a solidão. Às vezes até falavam uma com a outra. Habituara-se já aquele diálogo interior. Não conseguia pará-lo nem pedia para se calarem. A tristeza tomara conta dela, invadira-a de tal forma que nada era uma surpresa.
Lá fora o mundo continuava a existir. Tudo estava a mudar, falava-se de uma nova ordem, uns viam no caos a salvação, a redenção; outros mais pessimistas tinham perdido a vontade de lutar e continuar, restava-lhes ver o cenário mudar sem que os actores se dessem conta que o autor morrera e que o fim não podia ser feliz.
Uma civilização que declina, da qual só restarão vagas memórias e alguns livros que já ninguém lerá.

Para ela tudo lhe era quase indiferente… quase, pensou, afinal há um espaço, um espaço que pode ainda ser preenchido e essa réstia de luz, essa felicidade possível seria capaz de apagar a angústia?

Verão Vermelho


Não queria lembrar-se daquele Verão. Talvez o Verão mais quente da sua vida. A água do mar gelada. Uma contradição, uma espécie de castigo, de punição. A noite negra, sufocante, ameaçadora. Impossível dormir mesmo com as janelas abertas de par em par.
Um Verão vermelho, abrasador. Havia no ar uma ameaça, algo que podia acontecer mas que pressentia que não seria bom.
Os arrozais verdes lembrando um relvado, eram uma esperança falsa de uma frescura que não chegava.
Sentou-se na cadeira de balouço, não abrira o livro, não sentia coragem e no entanto era o seu livro, a sua história, a sua vida.
Escrevera-o a custo, vasculhando no armário do passado e encontrara memórias de tristezas esquecidas, de amores vividos e risos perdidos. Nada voltaria, o passado não volta, temo-lo mas não o conseguimos agarrar. O passado é forte, poderoso e frágil ao mesmo tempo.-
A cadeira balançava suavemente e os arrozais agitaram-se com a brisa que surgia vinho mar.

Adormeceu.

HB

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Ponte sobre o rio



Diria que a vida se dividira, como se um rio se tivesse atravessado entre o passado e o presente.
“Só temos o nosso passado” a frase vinha-lhe ao pensamento de forma persistente. As imagens corriam em liberdade, mas tudo parecia afogar-se num mar de sonhos não realizados. Projectos, tivera tantos, que agora a palavra perdera o sentido.
Pensara em escrever mas sentia-se um pouco como um barco à deriva, puxado pela corrente. Tinha consciência e isso irritava-a, que muitas vezes lhe faltara a coragem para atravessar a ponte, a ponte sobre o rio que se multiplicava em infinitos afluentes.
Deixou a imaginação mergulhar nas águas revoltas sem se afligir com a possibilidade de ser levada para longe, muito longe, onde o passado se diluía e o presente podia ser inventado todos os dias.

Ganhar a liberdade que a escrita sempre lhe oferecera e aceitar perder-se na imensidão de uma página branca onde tudo era possível acontecer.

O meu baloiço



Tinha hesitado voltar aquele lugar e aquela casa.  Não era por natureza saudosista e voltar atrás no seu passado e nas suas memórias era-lhe sempre doloroso.
Sim existia o passado, não o negava, nem o repudiava. O presente rapidamente se transformava em passado e o futuro fora sempre algo em que tivera dificuldades em se projectar.
Mas nesse dia não conseguiu escapar. Tinha sido quase uma imposição.  Ele dissera-lhe peremptoriamente :
“Não há como fugir, desta vez vamos até lá.”
Para quê pensou, para quê lembrar tempos que não poderiam voltar, uma infância de liberdade e de descoberta.
“A casa está à venda”, continuou, “vais deixar que apaguem todas as tuas memórias?”
Tocara-lhe no ponto fraco, memórias, não queria que de repente o seu passado fosse conspurcado, espezinhado, como se ela nunca tivesse vivido ali.
“Salvar as memórias”, isso dera-lhe coragem. Lá estava a casa branca, as portadas de madeira fechadas, o jardim descuidado, cheio de ervas. Abriu a custo o portão e angustiada, olhou à sua volta, procurando  a menina de tranças e o cão peludo que nunca a largava.
O balouço ainda lá estava, as cordas velhas, a tábua gasta pela chuva e pelo sol.

O balouço, o seu balouço e foi então que viu a menina de tranças que se balançava bem alto achando que podia voar. 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Felicidade...


Querias saber se eu era feliz…perguntaste-me com insistência: “Diz-me foste feliz?”
“Feliz… sim, fui, ainda sou e talvez possa continuar a ser, mas a felicidade não é um estado perene, estável…um dado adquirido; a felicidade é desigual, injusta e fugitiva.”
“Injusta, dizes…”
“Sim tu achas que uns merecem ser felizes e outros não? A felicidade conquista-se?” Perguntas.
“Não, constrói-se, desconstruindo. Precisas de te habituar a esquecer e perdoar, tenta voltar a ser criança e talvez voltar a sorrir. Vês, esboçaste um sorriso, já é um começo “
“Mas quando ele se foi embora sofreste que nem uma condenada.”
…”Sim, condenada a esquecer, a apagar as emoções, os sonhos, as recordações, mas queimei tudo, lembraste? E escrevi-lhe:
“Desapareceram as tuas memórias, as tuas fotografias, os teus discos, os teus livros, desapareceste tu”.

“Foi brutal, mas libertei-me, as cinzas são levadas pelo vento, o chão fica limpo outra vez e consegui caminhar à procura da luz e algo a que pudesse voltar a chamar de felicidade. Encontrei, nada foi em vão.”

O comboio



O comboio passava três vezes. Ouvia-se à distância. Ela contava sempre. Era o último. Saiam como que esquecidos de tudo. Um rebanho paciente cuja vida pouco lhes dera. Vinham de sítios diferentes, mundos que não eram novos. Só diferentes. Muitas vezes procuravam um olhar, talvez um ombro que os consolasse.
Ela procura reter as expressões, entender as frases. A fala era áspera. Muitos aconselhavam a não se meter. A mãe também lhe ralhava. Mas ela precisava entender. Os homens diferentes de fala áspera. Tristes como se a vida os atrapalhasse. Mas nada acontecia. Viravam a esquina como se nós não existíssemos.

Nunca falaram connosco e ela não os esqueceu nunca.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O passado é um presente?





O passado é um presente, presente como? Presente como a única coisa que temos a certeza que possuímos, que é nossa, exclusivamente nossa, sim, o passado é um presente que a vida nos foi oferecendo ao longo dos anos e que fomos ou não capazes de saborear, de aproveitar, de desperdiçar.
Quanta vida, tempo de vida que deslizou por entre os dedos, sem que nos preocupássemos um segundo que não o recuperaríamos nunca, que deitámos pela janela fora sem nos apercebermos que ele não voltaria mais.
O tempo é a estrada da nossa vida. Lembro-me de um amigo que não sabia guiar e pedia sempre para o levarem pelo caminho mais bonito, com curvas e contra curvas, com a vista surpreendente do mar, do precipício, das rochas abruptas, da subida difícil pela estrada estreita da montanha, da paisagem que de repente nos corta a respiração.
E quando cai um nevoeiro cerrado, que nos impede de perceber para onde vamos mesmo com os faróis acesos numa tentativa de encontrar a direcção correcta, resta-nos esperar que o fim não esteja tão longe assim.
O presente é tão fugaz que se perde entre o passado que sabemos ter e o futuro que queremos ter.

HB


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Desafios - Um pinhal - Um cesto de verga



  
O pinhal era a paisagem da sua infância e adolescência. No Verão as pinhas caíam e a caruma atapetava o chã; cheirava a calor e a liberdade. O cheiro está dentro dela, vivo para sempre na memória e o pensamento procura encontrar a sensação antiga da liberdade perdida.
O cesto de verga que segura no braço está vazio, quer enchê-lo de memórias felizes, enterradas fundo, tão fundo que só a liberdade pode ser capaz de as trazer à superfície.
Liberdade de pensar, amar, escolher, sofrer. 
O cesto ainda está vazio e de repente um cão branco aparece, traz na boca uma pinha que deixa cair a seus pés, depois corre novamente e traz outra pinha e mais outra e outra. O cesto está agora cheio, e o cão branco fugiu sem deixar rasto.
As pinhas libertam o perfume do sonho e da imaginação, onde tudo era possível, quando o passado ainda não existia, e o futuro era a eternidade.

Os anos apagavam-se como se nada tivesse acontecido, ficava só aquela sensação luminosa de um espaço imenso que podia ser conquistado.

Para sempre...?


Disseste que “me amavas e que seria para sempre.” Sorri céptica. “Tudo na vida é provisório, meu amor, tudo. A única coisa que temos a certeza de ter é o que vivemos ontem e talvez o que vivemos hoje.”
Olhaste-me espantado, não esperavas a minha reacção…”Mas tu és minha, eu sou teu…”
“É isso mesmo” respondi-te; “não gosto de espaços fechados, sufoco…A posse é um terreno escorregadio e perigoso. Não me convides para essa viagem onde rapidamente me perderias”.
O silêncio tomou conta de nós. Estamos em campos opostos. Um queria dar, o outro possuir. Se abríssemos os braços para nos aconchegarmos ficaríamos reféns um do outro.
As flores renasciam à nossa volta, vivas e frágeis. Apanhei um malmequer e dei-to   “Malmequer, bem me quer, muito, pouco, nada".

domingo, 6 de outubro de 2013

Os dias da semana / De hoje ... Até onde a memória nos levar



 Domingo, Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado

Hoje os dias da semana têm o perfume da liberdade. Todos eles dão espaço ao silêncio e à reflexão. Cada um tem o seu peso e talvez seja o Domingo o menos livre de todos.
Livre, a palavra parece tão simples…e acaba sendo uma espécie de puzzle onde se encaixa a rotina, a responsabilidade, a fantasia, o medo…Livre para gerir o seu tempo, parece-lhe uma versão economicista da liberdade.
Lembra-se quando as segundas-feiras eram sinónimo de trânsito, escritório, trabalho com agenda curtíssima, eventuais gritos do chefe, uma espécie de escravatura, bem vestida e alimentada.
Depois seguia-se a habituação: terça, quarta, quinta, horas cada vez mais carregadas, tensão aumentada, nervos esticados ao limite. Stress – odiava a palavra, para uns desde o momento que estivessem stressados, sentiam-se importantes, afinal só tinha stress quem era competente, competitivo, olhando para a frente, nunca para trás.
Sexta-feira por muito má que fosse funcionava como ante câmara de algum tipo de descontracção e a palavra mágica liberdade, fazia sentido.
Mas tudo isso já não a incomodava. O tempo tinha outro significado. Não precisava correr, ele corria por si.
Houve um tempo em que os dias da semana tinham pausas de ansiedade e paixão. Todo o resto se apagava e as horas eram minutos. Impossível fazer o tempo andar mais devagar. Fugia-lhe entre os dedos deixando um sabor amargo de solidão. Era um tempo sofrido e intenso que a deixava exangue.

Não queria ou queria esse tempo de volta? Não, não queria voltar atrás, regressar, enganar-se outra vez, perder-se outra vez, reencontrar a estrada e continuar a caminhar; deparava-se sempre com subidas e descidas, curvas e contracurvas. Mas agora que conhecia o caminho não tinha medo.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Para não escrever a minha vida, escrevi a tua




Sim, é mais fácil, tu és eu, e toda a gente vai perceber, mas é mais fácil, ao escrever em teu nome posso dizer tudo aquilo que não posso se for eu a assinar.
Então está combinado, tu és eu, e assim posso perdoar-te  as fragilidades, as palermices, os teus erros, as tuas vitórias, as tuas derrotas.
Eras doida, sem saberes ou talvez não o quisesses saber ou talvez tivesses medo de o saber.
Quiseste levar uma vida a que se chama normal e com a tua idade, deste-te mal. A normalidade não era o teu terreno e claro patinaste. Ficaste arranhada, magoada, às vezes perdida.
Valeu-te o teu instinto de sobrevivência, que não sabias que tinhas, mas que foste obrigada a conhecê-lo e foi ele que muitas vezes te atirou uma corda a que te agarraste com força até voltares à superfície.
Depois combinaste o incombinável, liberdade e maternidade. Corrias para a liberdade mas davas-lhe outros nomes, paixão, independência, o que te convinha na altura. A maternidade impediu-te a liberdade, impôs-te barreiras que aceitaste sem discutir. Mátria, não materna.- Não meiga e terna, simplesmente raízes e terra.
Tu eras um perigo sem saberes, uma ameaça que não querias ser.
Depois o tempo foi passando e encontraste o equilíbrio dentro do caminho cheio de curvas que escolheste.
E agora que vejo algumas rugas no teu rosto ainda sorridente, olho a serenidade no teu olhar.
HB


"Ela balato"





 Sexta-feira treze!



Levantou-se estremunhada. Mais uma vez o despertador não tocara. Odiava, odiava ter que se arranjar à pressa, não ter tempo para tomar o pequeno-almoço, apanhar um trânsito infernal e chegar inevitavelmente atrasada à reunião.
Tinha jurado que não compraria mais nada na loja do chinês, mas o relógio era tão barato, “ela tão balato” dizia a chinesa de cabelo escorrido e sorriso igual a sempre.
Ela levou o despertador para casa, à conta do “ela balato”. Lembrava-se do dia em que o marido da chinesa lhe tinha dito que a geringonça para tirar os borbotos da lã só trabalhava com “pilas glandes”. Entrou no jogo das “pilas” e comprou a geringonça que até era eficaz. Mas o despertador não. Não havia “pilas glandes” ou pequenas que lhe valessem.
A culpada era ela… e agora afogueada, uma malha no collant preto, o cabelo uma verdadeira juba, tenta pôr o carro a funcionar, não pega, tenta mais uma vez, silêncio total, liga o telemóvel… e vem de lá uma voz  “lamentamos informar, mas o serviço está suspenso…” “Merda, esqueci-me de pagar”. Não há volta a dar-lhe, não pode ir à reunião, não naquele estado calamitoso.

Tenta abrir a porta de casa, a chave? Esqueceu-se, não está na carteira…” “Ela tão balato”

HB

Labaredas




Foi um dia estafante. A agenda sem um único espaço livre; os doentes mais doentes do que o habitual. “É a crise com certeza”, pensou…”as pessoas estão a ficar mais malucas, desatinadas, sem saber para onde vão, “é terrível a desesperança” e “este país é mínimo, um pobre rectângulo, com o mar de um lado e a Espanha do outro. Estou cansado, farto.”
Mário caminha a passos largos pela avenida. O ar está frio, mas o céu limpo sem uma nuvem. Respira fundo, dentro de pouco tempo estará em casa. Apressa-se, precisa do seu refúgio, do sofá de pele, da música baixa, do whisky sempre da mesma marca.
Abre a porta do apartamento, o cão não vem ao seu encontro, chama-o “Pepsi, Pepsi”, mas não há Pepsi; sente um sobressalto, “alguma coisa aconteceu” pensa. Olha em frente, a porta do escritório está entreaberta, empurra-a com força e pára estupefacto. Vazio, completamente vazio, nada, não há nada, só um envelope branco no chão. Abre-o com medo, reconhece de imediato a letra…
E lê:
“Julgavas então que estava tudo acabado. Que cada um ia para seu lado, muito bem-educados e resignados. Não me conhecias e assim descobres com surpresa, penso, a mulher que tinhas a teu lado.
Levei tudo e a esta hora estará tudo queimado. Desapareceram as tuas memórias, as tuas fotografias, os teus discos, os teus livros. Desapareceste tu. Por mim estou aliviada. Queimei-te também”.


HB

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Jean Christophe" para a Rosi



Falei-te deste livro muitas vezes, li-o há muitos anos, quando tudo era ainda desconhecido para mim; a vida, a paixão, a morte. Chorei e sofri ao lê-lo, mas não o esqueci nunca, por isso o escolhi para ti.
Rias-te, dizias que era a minha bíblia, irritavas-me e não me esqueço. Ofereço-te hoje depois de tantos anos, como vingança dessa ironia imatura.
Tenho saudades do tempo da voragem, da fome, quando um livro era sempre mais uma descoberta, um passeio, uma viagem, um drama vivido também por mim.
“Jean Christophe”, a solidão, a amizade, o amor. As lágrimas que corriam sem eu as poder parar, a sofreguidão da leitura.
O tempo apagou o ímpeto, talvez porque a vida se encarregou de se tornar um livro, que procurei escrever, muitas vezes sem me preocupar com o ritmo, a velocidade, o perigo.
E por isso me lembro de “Jean Christophe” e a emoção com que o li. Porque nessa altura eu gostava da tristeza sem ser triste, e compreendia a solidão sem estar só.
A vida, capítulos que se escrevem, que se encerram. Volume I, II, III,  e talvez ainda o IV e o V. Não pensei que o livro fosse tão longo.

Rias-te, quando eu vivia pelo “Jean Christophe” e para o “Jean Christophe”. E hoje, porque não te perdoo se não o leres, vais perceber a minha emoção. 

Um novo caminho




Foi há uns anos atrás quando uma amiga querida me convidou para assistir a uma aula de "Escrita Criativa". Reformada, odeio a palavra mas não me lembro de outra melhor, em inglês é "retired" o que sempre é um pouco melhor: uma pessoa que se retira, afasta-se de um lugar, de uma situação, não tem que necessariamente que se reformar, tornar a formar, adquirir uma outra forma; no meu caso pessoal fiquei como estava, com a mesma cara, as mesmas rugas (só algumas, a herança genética ajuda), o mesmo peso, a mesma capacidade de rir e chorar, o mesmo sentido de humor, mas, mas com muito mais tempo livre que consegui preencher rapidamente!
Espaço para a escrita, para as aulas, primeiro do Luís Filipe, depois da Margarida F. S., e é ao ritmo da Margarida, já lá vão cinco anos, que os textos, as sensações, as emoções, as pequenas histórias, também gosto mais em inglês "short stories" têm surgido. São minhas, sou eu e sinto algum orgulho de ser eu, porque tudo acontece tão depressa, que não há tempo para enfeitar, rebuscar, fingir. E as melhores histórias são sempre as que passam por nós, sem nos apercebermos bem como, mas estamos lá!
Obrigada Margarida pelos desafios, pelos estímulos, pela paciência; a si lhe devo os meus "desafios ritmados".

terça-feira, 1 de outubro de 2013

A caneta azul




Maria abriu o envelope com cuidado, calculava o que tinha lá dentro; na véspera deixara reservado um magnífico caderno sem linhas, grande como ela gostava e aquela caneta azul safira que já namorava há alguns meses.
Só podia ter sido Carlos.  Parecia adivinhar os seus pensamentos e os seus desejos e adorava fazer-lhe pequenas surpresas. Não se enganou, lá estava o caderno e a caneta. Sorriu, havia também um cartão:
“Não poderei estar contigo amanhã. Vais poder escrever à tua vontade, sem as minhas habituais interrupções. Imagino-te compenetrada, alheia a tudo à tua volta. Amo-te C”
Pousou o caderno em cima da secretária, as folhas brancas imaculadas. A caneta era linda, pegou nela carinhosamente. Um dia só para ela e as páginas vazias à sua espera. Rabiscou umas palavras, riscou-as. Olhou pela janela, o dia estava frio, transparente e aquele esplendoroso sol de Inverno. “Tenho todo o tempo”, pensou. Tentou outra vez, sim ia recomeçar a escrever.
Carlos acreditava no seu talento, quantas vezes lhe dizia: ”És uma fantástica contadora de histórias e ainda por cima sabes escrever…”
Mais umas palavras, a tentativa de um começo, “não, nada daquilo fazia sentido. Achou o seu estilo piegas e comum. “Talvez se eu abordasse a história de outra maneira”, “E se eu começasse pelo fim…, era uma hipótese.”“Deixa-me pensar como é que a Margarida nos ensinou a construir uma história…ah, é verdade, o ponto de viragem. Mas logo no principio? Não seria fácil, era melhor a meio talvez, não sei…”

O papel é branco, demasiado branco, como de repente fosse uma nuvem imensa, gigantesca…onde Maria  se perdeu.

A  famosa página em branco ... o início de um novo capítulo,
o nervosismo do estreante, "trois fois m."!